sexta-feira, 24 de maio de 2024

Contos de artimanha - Pedro Malasartes e outras histórias

 

O que são contos de artimanha?



São narrativas, geralmente curtas, nas quais os personagens – humanos ou animais – utilizam-se de ardis (armadilhas ou disfarces), truques, malandragens, gambiarras e espertezas para garantir sua sobrevivência ou mesmo a vitória contra forças maiores que a sua.

Em tais contos – de artimanha; ou de manhas e artimanhas; ou de astúcia, ou ainda, de esperteza, como costumam ser denominados – a trama é sempre organizada em torno de um personagem que utiliza a esperteza para obter o que deseja, ludibriando outro – ou outros – personagem ingênuo ou, pelo menos, não tão esperto como o protagonista. Dessa maneira, os ardis são sempre inesperados e engenhosos, nunca havendo uso de estratégias usuais e previsíveis.  

 Estes protagonistas - que podem ser pessoas ou animais – acabam por representar a possibilidade de ludibriar certos valores da sociedade que os segrega ou exclui, valores estes sintetizados na figura de seu antagonista. Assim, podem ser personagens que sofrem pela pobreza, o que lhes acarreta ausência de dinheiro, de comida e bens materiais; podem sofrer por problemas que se realizam no interior da família (ou de um casal, como a traição) que desafiam astuciosamente os valores morais vigentes; podem, ainda, ser alvo do autoritarismo de representantes de classes sociais hierarquicamente superiores.

(...) Os contos de artimanha são comumente organizados no eixo temporal, quer dizer, as ações narradas são apresentadas em uma ordem e sequência de tempo claramente indicadas. O tempo da narrativa costuma ser indefinido, mas o local pode ser especificado em alguns textos, já que se referem à tradição oral e, dessa forma, a sua origem histórica pode remeter a uma região específica[2] . As relações de causalidade marcam a progressão temática no que se refere à relação existente entre os motivos do protagonista, a estratégia que desenvolve para resolver o problema colocado a ele e às consequências/resultados do plano executado.

Nestes contos não há a presença do elemento mágico típico dos contos de fadas e de encantamento: a astúcia do protagonista o substitui. Tampouco há príncipes, reis e princesas: sendo assim, quando acontece a resolução do problema por meio do casamento, este acontece com a filha do patrão, por exemplo.

Do ponto de vista especificamente textual, a artimanha do protagonista costuma ser apresentada ao leitor – e comumente também aos seus antagonistas - no momento em que está sendo desenvolvida na história, e não de maneira antecipada. Quer dizer: em tais textos, não é usual que haja antecipação do plano do personagem esperto ao leitor; ao contrário, este toma conhecimento do plano na medida em que está sendo posto em ação, o que coloca suspense no texto, quase sempre surpreendendo, ao final, tanto personagens quanto leitores.

IMPORTANTE SABER 

Nos contos de artimanha a trama é conduzida sob a ótica de um herói malandro que troça de ricos, poderosos, de instituições, mas também de indivíduos comuns cujo comportamento destoa de um padrão convencional.

Na trama, o protagonista costuma agir: a) para melhorar a sua situação ou a situação de um aliado, procurando obter recompensa, ou então explorando uma situação que possa lhe render algum benefício material; b) para proteger-se de uma ameaça ou agressão, vinda de alguém que o subestima, e/ou explora ou a um aliado; c) punir um oponente, vingando-se dele.

Como ficam esses aspectos quando se trata de contos que envolvem apenas animais?

Nesse caso, a esperteza e a astúcia são as únicas armas de que o animal de porte pequeno dispõe – com possibilidade de vitória - para enfrentar o inimigo mais forte. O antagonista é representado, portanto, por aquele que é superior ao esperto em relação à força física e tamanho. Isso se justifica considerando que na lógica da natureza, sobrevive quem é mais forte. O conto de esperteza mostra a possibilidade de subverter essa lógica por meio da esperteza

Na fábula, os animais representam as virtudes e defeitos humanos, segundo a visão do homem. Este é o critério de seleção dos mesmos para a composição da trama. Por exemplo: a raposa costuma representar a astúcia; o coelho, a rapidez, agilidade; o macaco, traquinagem e esperteza; a cegonha, a pureza, maternidade, bondade.

A finalidade da fábula é mostrar ao homem a sua condição e regras morais que deveria respeitar. Assim sendo, a característica de cada animal é apenas servir ao propósito de ensinar ao homem por meio de uma comparação.

As relações estabelecidas entre os animais das fábulas são, portanto, diferentes daquela estabelecida no conto de artimanha: nestes, o que vale é a possibilidade de subverter uma relação de predador-presa; uma ideia de que o maior e mais forte fisicamente sobrevive pela seleção natural. Nas fábulas isso não se coloca. 


 Extraído de:
Contos de Esperteza - Fragmento do projeto produção de final de contos de  esperteza: "Arte e manha na escrita de autoria", disponível em http://aescolaresfundamental.blogspot.com.br/2014/10/como-trabalhar-contos-de-artemanha.html



SELEÇÃO DE CONTOS DE ARTIMANHA


 
A Velhinha Inteligente

Esta é uma história que se conta até hoje na cidade de Carcassonne, ao sul da França. Há várias versões do mesmo caso, mas todas concordam num ponto: a cidade foi salva graças à esperteza de uma mulher.
Há muitos e muitos séculos, a próspera cidade de Carcassonne foi cercada por guerreiros inimigos. Embora protegida por muralhas e portões, a população não estava a salvo: como ninguém pudesse sair, aos poucos a comida foi escasseando. Logo chegou o dia em que ninguém mais tinha o que comer, e os inimigos, do lado de fora, resistiam teimosamente, esperando a rendição da cidade.
Então, o governador de Carcassonne, refletindo sobre a gravidade da situação, resolveu que era preferível entregar-se a ver seu povo morrer de fome. Entretanto, assim que ele anunciou a todos a sua resolução, uma senhora, madame Carcas, já bem idosa e por isso mesmo muito experiente, adiantou-se e disse que tinha um plano para salvar a cidade.
Todos riram dela, porém como já se consideravam perdidos, acharam que não faria mal escutá-la.
__Primeiro, tragam-me uma vaca – pediu ela.
__Uma vaca?!? – exclamaram. – E como vamos achar uma vaca?
Mas madame Carcas insistiu e todos se puseram a procurar de casa em
casa.
Vira daqui, revira de lá, encontraram, por fim, uma vaca muito magra, na casa de um avarento, que a havia escondido por medo de morrer de fome. Ele bem que reclamou, mas o animal foi levado até a velha senhora.
__Agora – disse ela – juntem tudo o que puderem de alimentos, restos, cascas, o que encontrarem!
Assim fizeram todos, conseguindo juntar um saco cheio de restos de cereais.
__Muito bem – aprovou a madame. – Deem tudo isso à vaca!
__À vaca?!? Isso é um absurdo! Todos nós temos fome!
__Pois deem tudo à vaca e não vão se arrepender – garantiu a velhinha.
Não sem relutar, fizeram o que ela dizia. A vaca rapidamente engoliu aquilo que para todos parecia um banquete desperdiçado.
__Agora, abram com cuidado os portões e deixem a vaca sair – ordenou a senhora.
__Essa velha é louca! – gritaram alguns. Mas como madame insistisse com tanta segurança, resolveram obedecer-lhe até o fim.
Do lado de fora, a tropa inimiga percebeu que os portões da cidade se abriram.
Intrigados, viram que uma vaca escapava. Mais do que depressa, capturaram o animal e o levaram para seu chefe de armas.
__Veja, senhor, eles deixaram uma vaca escapar! Graças a esse descuido, hoje teremos um bom jantar!
O chefe, intrigado, ordenou que matassem a vaca. Mas, quando abriram a barriga do animal e ele a viu forrada de cereais, muito preocupado, concluiu:
__Soldados! Se os habitantes dessa cidade ainda têm tantas provisões que podem alimentar suas vacas e além disso se dar ao luxo de deixá-las escapar, é sinal de que poderão resistir ainda por muito tempo. É melhor nos retirarmos, pois certamente morreremos de fome antes deles.
Assim, os inimigos foram embora e a cidade foi salva.
Dizem que a velhinha, vendo partir os soldados, subiu à torre da igreja e começou a tocar o sino, em sinal de vitória. Ouvindo aquilo, o povo gritou:
__Viva! Carcas sonne! – que em francês quer dizer “Carcas está tocando o sino”.
É por isso que a cidade foi chamada de CARCASSONNE.

(PAMPLONA, Rosana. Novas Histórias Antigas.Brinque-book)

Sopa de pedras

História de Figueiredo Pimentel

Um dia, Pedro Malasartes estava caminhando pela estrada e sentia muita fome.

Ele viu uma casinha e foi pedir algo para comer, viu que lá havia algumas galinhas, algumas cabras e uma horta. Bateu na porta e uma mulher atendeu. Ele pediu comida, mas a mulher respondeu:

– Aqui não tem nada não, já almocei e não sobrou nada.

– Tudo bem, minha senhora, mas então, a senhora poderia me emprestar uma panela, vou fazer uma sopa de pedras.

– Sopa de pedra? E fica bom?

– Fica sim minha senhora, fica deliciosa.

A mulher ficou impressionada com isso e também curiosa, pensou no quanto economizaria se aprendesse a fazer tal sopa. Ela emprestou a panela e foi observar o que aquele rapaz faria.

Pedro fez uma fogueira, pegou água em uma bica ali perto, pegou algumas pedras que estavam no quintal, as lavou, colocou na panela e pôs para ferver.

A mulher não parava de olhar e ele lhe disse:

– A senhora pode me emprestar um pouco de sal?

– Sim claro!

 Assim que a mulher voltou, ele falou:

– Se tiver alguns temperos vai ficar melhor ainda.

– Claro, vou buscar!

– Se tiver cebola, alho, batata, arroz e cenoura fica melhor ainda.

– Só um minuto que já trago.

Pedro Malasartes foi colocando tudo na panela.

– Vi que a senhora tem algumas galinhas, se colocar galinha fica muito melhor.

– Tenho galinha na geladeira, vou pegar.

E assim Pedro fez a sopa e quando ficou pronta ele falou:

– A senhora quer comer também?

– Quero sim!

Ele fez o seu prato, fez um prato para a mulher e comeram juntos.

Assim que acabou a mulher perguntou:

– A sopa é realmente muito boa, mas e as pedras?

– As pedras a gente lava e dá para usar numa próxima sopa!


O SAPO E O  COELHO
O Coelho vivia zombando do Sapo. Achava-o preguiçoso e lerdo, incapaz de qualquer agilidade. O sapo ficou zangado:
__Quer apostar corrida comigo?
__Com você? - assombrou-se o coelho.
__Justamente! Vamos correr amanhã, você na estrada e eu pelo mato, até a beira do rio...
O coelho riu muito e aceitou o desafio. O sapo reuniu todos os seus parentes e distribuiu-os na margem do caminho, com ordem de responder aos gritos do coelho.
Na manhã seguinte os dois enfileiraram-se e o coelho disparou como um raio, perdendo de vista o sapo que saíra aos pulos. Correu, correu, correu, parou e perguntou:
__Camarada Sapo?
Outro sapo respondia dentro do mato:
__Oi?                          
O coelho recomeçou a correr. Quando julgou que seu adversário estivesse bem longe, gritou:
__Camarada Sapo?
__Oi? - coaxava um sapo.
Debalde o coelho corria e perguntava, sempre ouvindo o sinal dos sapos escondidos. Chegou à margem do rio exausto mas já encontrou o sapo, sossegado e sereno, esperando-o. O coelho declarou-se vencido.

(CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo (SP): Global, 2004; p.186.)



O cego que não era bobo
Era uma vez um cego que andava mendigando de porta em porta para sobreviver. Muito prudente, do pouco que ganhava ainda conseguia economizar algumas moedas, que enterrava nos fundos de sua casinha, junto à raiz de um carvalho.
Um dia, seu vizinho percebeu que ele escondia ali alguma coisa. Sorrateiro, à noite, o espertalhão foi até lá, cavou a terra e roubou as moedas.
Dali a uns dias, quando o cego voltou ao local para acrescentar uma moeda ao seu tesouro, descobriu o furto. Indignado, quis gritar, mas controlou-se; de nada adiantaria lamentar-se. Em vez disso, voltou para casa e começou a pensar numa maneira de recuperar seu dinheiro. Desconfiou de que o ladrão só poderia ser o vizinho e armou um plano para enganá-lo.
Na manhã seguinte, procurou-o dizendo assim:
__Caro vizinho, estou numa grande dúvida e pensei que você poderia aconselhar-me. Acontece que hoje fiquei sabendo que herdei de uma velha tia uma fortuna em moedas de ouro. Eu tenho um esconderijo secreto onde guardo minhas economias, mas não sei se lá é um lugar seguro, a salvo de ladrões. Você não acha que talvez fosse melhor entregar essa fortuna para o vigário da aldeia guardar?
Os olhos do vizinho piscaram de cobiça. E já pensando em pôr as mãos em todo o tesouro, assegurou ao cego que o melhor seria guardar tudo junto no esconderijo, com certeza um lugar muito seguro, sim!
O cego agradeceu o conselho e partiu para a aldeia, dizendo que ia buscar a herança. Sem perder tempo, o vigarista recolocou o que furtara no buraco ao pé da árvore; cobriu tudo com terra e foi embora.
Dali a pouco o cego voltou e, conforme esperava, encontrou no lugar de sempre as suas preciosas moedas.
À noite, quando o vizinho ladrão retornou, só encontrou ao pé do carvalho um buraco vazio, tão vazio quanto sua pobre cabeça de tolo...
(PAMPLONA, Rosana. Novas  Histórias Antigas. São Paulo (SP): Brinque-Book,  p.43-45.)

 
ONÇA E O BODE
O Bode foi ao mato procurar lugar para fazer uma casa. Achou um sítio bom. Roçou-ou e foi-se embora. A Onça, que tivera a mesma idéia, chegando ao mato e encontrando o lugar já limpo, ficou radiante. Cortou as madeiras e deixou-as no ponto.
O  Bode, deparando-se com a madeira já pronta, aproveitou-se, erguendo a casinha. A Onça voltou e tapou-a de taipa. Foi buscar seus móveis e quando regressou encontrou o Bode instalado. Verificando que o trabalho tinha sido de ambos, decidiram morar juntos.
Viviam desconfiados um do outro. Cada um teria sua semana para caçar. Foi a Onça e trouxe um cabrito, enchendo o Bode de pavor. Quando chegou a vez deste, viu uma Onça abatida por uns caçadores e a carregou até a casa, deixando-a no terreiro. A Onça, vendo a companheira morta, ficou espantada:
__Amigo Bode, como foi que você matou essa Onça?
__Ora, ora...Matando! - respondeu o Bode cheio de empáfia.
__Porém, insisitindo sempre a Onça em perguntar-lhe como havia matado a companheira, disse o Bode:
__Eu enfiei esse anel de contas no dedo, apontei-lhe o dedo e ela caiu morta.
A Onça ficou toda arrepiada, olhando o Bode pelo canto do olho. Depois de algum tempo, disse o Bode:
__Amiga Onça, eu lhe aponto o dedo...
A Onça pulou para o meio da sala, gritando:
__Amigo Bode, deixe de brinquedo...
Tornou-lhe o Bode a dizer que lhe apontava o dedo, pulando a Onça para o meio do terreiro. Repetiu o Bode a ameaça e a onça desembandeirou pelo mato a dentro, numa carreira danada, enquanto ouvia a voz do Bode:
__Amiga Onça, eu lhe aponto o dedo...
Nunca mais a Onça voltou. O Bode ficou, então, sozinho na sua casa, vivendo de papo para o ar, bem descansado.
(CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. São Paulo (SP): Global, 2004; p.205.)

Luís da Câmara Cascudo

I Um casal de velhos possuía dois filhos homens, João e Pedro, este tão astucioso e vadio que o chamavam Pedro Malazarte. Como era gente pobre, o filho mais velho saiu para ganhar a vida e empregou-se numa fazenda onde o proprietário era rico e cheio de velhacarias, não pagando aos empregados porque fazia contratos impossíveis de cumprimento. João trabalhou quase um ano e voltou quase morto. O patrão tirara-lhe uma tira de couro desde o pescoço até o fim das costas e nada mais lhe dera. Pedro ficou furioso e saiu para vingar o irmão.

Procurou o mesmo fazendeiro e pediu trabalho. O fazendeiro disse que o empregava com duas condições; não enjeitar serviços e do que primeiro ficasse zangado tirava o outro uma tira de couro. Pedro Malazarte aceitou.

No primeiro dia foi trabalhar numa plantação de milho. O patrão mandou que uma cachorrinha o acompanhasse. Só podia voltar quando a cachorra voltasse para casa. Pedro meteu o braço no serviço até meio-dia. A cachorrinha deitada na sombra nem se mexia. Vendo que era combinação Malazarte largou uma paulada na cachorra que esta saiu ganindo e correu até o alpendre da casa. O rapaz voltou e almoçou. Pela tarde nem precisou bater na cachorra. Fez o gesto e o bicho voou no caminho.

No outro dia o fazendeiro escolheu outra tarefa. Mandou-o limpar a roça de mandioca. Pedro arrancou toda plantação, deixando o terreno completamente limpo. Quando foi dizer ao patrão o que fizera este ficou feio.

– Zangou-se, meu amo?

– Não senhor, – respondeu o patrão.

No outro dia disse que Pedro trouxera o carro de bois carregado de pau sem nós. Malazarte cortou quase todo o bananal, explicando que bananeira é pau que não tem nó. O patrão ficou frio:

– Zangou-se, meu amo?

– Não senhor.

No outro dia mandou-o levar o carro, com a junta de bois, para dentro de uma sala numa casinha perto, sem passar pela porta. E para melhor atrapalhar, fechou a porta e escondeu a chave. Malazarte agarrou um machado e fez o carro em pedaços, matou os bois, esquartejou-os e sacudiu, carnes e madeiras, pela janela, para dentro da sala. O patrão, quando viu, ficou preto:

– Zangou-se, meu amo?

– Não senhor.

Mandou vender na feira um bando de porcos. Malazarte levou os porcos, cortou as caudas e vendeu-os todos por um bom preço. Voltando enterrou os rabinhos num lamaçal e chegou em casa gritando que a porcada esta atolada no lameiro. O patrão foi ver e deu o desespero. Malazarte sugeriu cavar com duas pás. Correu para casa e pediu à dona que lhe entregasse dois contos de réis. A velha não queria mas o rapaz para certificá-la, perguntava ao patrão por gestos se devia levar um ou dois, e mostrava os dedos. Ante aos gritos do amo, a velha entregou o dinheiro ao Pedro. Voltou para o lameiro e começou a puxar a cauda de cada porco que dizia estar enterrado. Ia ficando com todas na mão. O patrão ficou suando mas não deu mostras de zanga. E Pedro ainda negou que tivesse recebido dinheiro.

Vendo que ficava pobre com aquele empregado, o fazendeiro resolveu matá-lo o mais depressa possível, de um modo que não o levasse à justiça. Disse que andava um ladrão rondando o curral e deviam vigiar, armados, para prender ou afugentar a tiros. A idéia era atirar em Malazarte e dizer que se tinha enganado, supondo-o um malfeitor. De noite o fazendeiro foi para o curral e Pedro devia substituí-lo ao primeiro cantar do galo. Quando o galo cantou, Malazarte acordou a velha e disse que o marido a esperava no curral, e que levasse a outra espingarda, porque ele, Pedro, ia fazer o cerco pelo outro lado. A velha apanhou a carabina e foi, sendo morta pelo fazendeiro com um tiro certo de que abatia, pelo vulto, o atrevido criado. Assim que a velha caiu, Pedro apareceu chorando e acusando o amo. Este, assombrado pagou muito dinheiro para não haver conhecimento da justiça e ofereceu ainda mais dinheiro se o Malazarte se fosse embora, sem mais outra proeza. O rapaz aceitou e voltou rico para casa dos pais.


II

Não podendo ficar sossegado, Malazarte largou a casa, indo correr mundo. Logo no primeiro dia encontrou um urubu com uma perna e uma asa quebradas, batendo no meio da estrada. Agarrou o urubu e meteu-o dentro de um saco, seguindo caminho. Ao anoitecer estava diante de uma casa grande e bonita, alpendrada. Pela janela viu uma mulher guardando vários pratos de comidas saborosas e garrafas de vinho. Bateu e pediu abrigo mas a mulher recusou, dizendo que não estava em casa o marido e ficava feio ter um homem de portas a dentro. Malazarte foi para debaixo de uma árvore e reparou na chegada de um rapaz ainda moço, recebido com agrados pela dona da casa que o levou imediatamente para jantar. Iam os dois começando a refeição quando o dono da casa apareceu montado num cavalo alazão. O rapaz pulou uma janela e fugiu. Malazarte deu tempo para o dono da casa mudar o traje e tornou a bater e pedir dormida. O dono apareceu e mandou-o entrar, lavar as mãos e ir jantar com ele.

A comida que apareceu era outra, bem pobre e malfeita. Malazarte, sempre com o urubu dentro do saco, deu com o pé, fazendo-o roncar, começou a falar, baixinho, como se estivesse discutindo.

– Com quem está falando? – Perguntou o dono da casa.

– Com esse urubu.

– Sim senhor, falando e adivinhando. Esse urubu é ensinado a adivinhar.

– E o que ele está adivinhando a agora?

– Está me dizendo que naquele armário há um peru assado, arroz de forno, bolo de milho e três garrafas de vinho.

– Não me diga … Procura aí, mulher!

A mulher procurou e, fingindo-se assombrada pela surpresa, encontrou tudo quanto anunciara o urubu e trouxe os pratos e o vinho para a mesa. Comeram fartamente e o dono quis porque quis comprar o urubu. Pela manhã Malazarte, muito contrariado, aceitou o dinheiro alto e foi embora, deixando o urubu que nunca mais adivinhou cousa alguma.


III

Malazarte encontrou uma ruma de excremento ainda fresca, no meio da estrada. Parou curvou-se e cobriu com seu próprio chapéu, ficando de cócoras, segurando as abas, como se guardasse uma preciosidade. Passou um homem, a cavalo, e parou, perguntando:

– Que está guardando aí?

– O mais bonito passarinho do mundo! Custou mas segurei-o

– E o que vai fazer?

– Esperar que passe um conhecido para vendê-lo ou mandar comprar uma gaiola.

– Quanto quer pelo passarinho?

– Vinte mil-réis!

– Está fechado. Tome o dinheiro, monte neste cavalo e vá buscar uma gaiola, ali na vila.

Apeou-se, Malazarte meteu o dinheiro no bolso, cavalgou o animal, picou-o nas esporas e desapareceu para sempre.

O dono do passarinho esperou, esperou e, perdendo a paciência ou cutucado pela curiosidade, passou a mão para segurar a mais linda ave do mundo, ficando com ela suja e nauseante, furioso pelo logro e sem poder castigar o astucioso larápio.


IV

Órfão de pai, Malazarte viu morrer sua mãe, ficando muito triste. Mas, sendo ardiloso por natureza, do próprio cadáver quis aproveitar e ganhar mais dinheiro. Saiu com ele e escondeu-o nuns capins, perto de um pomar. O dono desse pomar era homem rico e violento, tendo comprado uma matilha de cachorros ferozes para a defesa das frutas. Ao anoitecer, Malazarte levou o corpo da velha e sacudiu-o por cima da cerca. Os cachorros acudiram imediatamente ladrando e mordendo. Nesse momento, Malazarte começou a gritar pelo dono do pomar, e quando este apareceu acusou-o de haver assassinado sua mãe, velhinha inofensiva que entrara no sítio para apanhar um graveto de lenha. Sabendo da ferocidade dos cachorros, Malazarte correra para impedir mas já chegara tarde. O dono do pomar, cheio de medo, pagou muito dinheiro e ainda encarregou-se de enterrar a velha com toda a decência.


V

Pedro Malazarte comprou uma panelinha nova para cozinhar quando viajasse. Na primeira viagem que fez levou a panelinha e estava preparando seu almoço, já abrindo a fervura, quando ouviu o tropel de um comboio que carregava algodão. Mais que depressa cavou um buraco, colocou todas as brasas e tições, cobrindo de areia, e pôs a panela por cima, fervendo. Os comboieiros que iam passando ficaram admirados de ver uma panela ferver sem haver fogo. Pararam, discutiram e perguntaram se Malazarte a queria vender por bom dinheiro. O sabidão fez-se muito rogado, dizendo ter adquirido aquele objeto em terras distantes, mas terminou vendendo a panelinha. Os comboieiros seguiram jornada, muito satisfeitos da compra que no outro dia verificaram ser mais um logro do endiabrado rapaz.


VI

Nas cercanias da casa de Pedro Malazarte morava um homem rico e muito avarento. Vivia enganando toda a gente e sendo detestado por todos os vizinhos. Não pagava ordenado aos seus empregados porque fazia apostas e não era possível cumprir-se uma das condições porque tinham sido escolhidas com intenção de burla. Malazarte ofereceu-se para criado e o homem aceitou.

Se Malazarte ficasse trinta dias sem pedir a conta, seria pago três vezes, e não o fazendo, nada teria de direito.

O homem mandou Malazarte com mais duzentas ovelhas para o campo, com ordem de passar por uma garganta de serra muito estreita. As ovelhas recusavam avançar e os empregados anteriores haviam desistido com esse embaraço. Malazarte chegou ao boqueirão, agarrou uma ovelha, amarrou-a e saiu na frente puxando o animalzinho. As outras acompanharam sem dificuldade.

Não deram rede para Malazarte dormir. Durma onde quiser, disse-lhe o homem. Pedro, vendo que o casal guardava a comida num armário grande, trepou-se para cima, com as pernas descidas e recusou sair, dizendo ser aquela a sua cama. Como o casal queria comer, ofereceram ao novo empregado o direito de fazer as refeições com eles, marido e mulher, chegando à conclusão de que só iam comer pão e bolachas, o que davam a Pedro quando ele se empregou.

Mandou o dono que Malazarte levasse o carro de bois e o metesse numa sala sem passar pelas portas. Malazarte despedaçou o carro, partiu os bois em quatro e jogou tudo pela janela.

Dias depois o dono da casa foi viajar e recomendou a Pedro que queria encontrar o gado muito bem tratado, rindo-se com o tempo. Quando o homem voltou viu que Malazarte havia cortado os beiços dos bois, vacas, novilhos, touros, deixando-os com os dentes de fora, como se estivessem rindo. Não quis mais conversa. Pagou três vezes e mandou que Pedro Malazarte fosse embora antes que ficasse completamente arruinado.


(Cascudo, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte; São Paulo, Itatiaia, Editora da Universidade de São Paulo, 1986. Reconquista do Brasil, 2ª série, 96)

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